quarta-feira, outubro 03, 2007

“Abu Ghraib” dos pequeninos

A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Uma academia de qualidade caracteriza-se, entre outras coisas, pela ausência de barreiras hierárquicas entre os seus membros, por um respeito mútuo universal e por um sentimento de pertença à comunidade universitária. A praxe é a negação de tudo isto: um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias. Comparado com o ‘bullying’ na escola, a praxe tem as agravantes de ser uma prática institucionalizada, levada a cabo por e sobre adultos e em instituições onde o acesso não é imediato mas dependente do mérito.

Há quem defenda que a praxe é uma boa forma de integração e que muitos caloiros as consentem e se divertem com elas. Há ainda quem defenda que elas são um “investimento rentável” porque o caloiro sofre um custo no primeiro ano, mas tem depois vários anos de benefícios, se resolver exercer o seu direito à vingança sobre – e usando o jargão habitual destas festividades – as “fornalhas” seguintes de “carne fresca” e de “animais”. Vamos por partes.

A praxe é a (...) um exercício de poder marcado pelo desrespeito pelo outro, pela possibilidade de o ostracizar de modo arbitrário e onde tudo se resume a uma questão de hierarquias.

É inegável que, no contexto actual, algumas actividades das praxes contribuem para a integração de alguns alunos, e existirão seguramente intenções boas em muitos praxantes. Mas nada disso torna as praxes mais suportáveis. O direito a coagir e a humilhar o outro é simplesmente intolerável – e isso é suficiente para as excluir cabalmente. Quem defende que a praxe é um investimento com retorno apreciável esquece-se de que o “contrato” entre as partes raramente é feito de livre vontade. A desproporção entre o número de praxantes e praxados revela que são poucos os que preferem fazer uso desse “direito adquirido”.

Os reitores e demais dirigentes das nossas universidades são largamente complacentes com esta tradição. Incorrem no pecado mortal que Pacheco Pereira apontou aos “notáveis” do PSD: a “acedia” – a apatia em praticar a virtude, a indiferença face ao mal. Por que não tomam, concertadamente, uma posição que permita acabar com o ‘statu quo’ actual, de rituais de dominação e subjugação que lembram, com as devidas diferenças, o grotesco “Saló ou os 120 dias de Sodoma”? Há imensas formas não coercivas de integrar os alunos. Pactuar com essas pequenas amostras de “Abu Ghraib” é tudo o que uma universidade não pode ser.