quarta-feira, novembro 15, 2006

Realismo e incoerências

Nem tudo o que é ilegal ou ilícito é imoral (ex: conduzir uma mota sem capacete) e nem tudo o que é imoral tem de ser ilegal ou ilícito (ex: trair um amigo).


Conta-se que Bernard Shaw (1856-1950) terá perguntado a uma senhora, num jantar, se por 1.000 libras aceitaria ter sexo com um homem. A resposta – afirmativa – levou-o a propor o mesmo por 1 libra. A senhora ripostou: “Por quem me toma? Uma prostituta?”. O escritor replicou: “Isso nós já determinámos. Agora apenas discutimos o preço”.

Para o que aqui importa, a moral desta história é simples: haverá sempre quem encare escolhas que a sociedade entende estarem no campo da ética – ou seja, fundamentalmente para lá de uma análise de custo-benefício – assim mesmo: como uma mera questão de preço. Não há razão para crer que esta regra geral encontre uma excepção nos guardas prisionais.

Talvez João Pereira Coutinho não concorde comigo. Diz ele que “admitir a troca de seringas é admitir que existe tráfico nas prisões” e, por conseguinte, “admitir que a corrupção abunda” (Expresso, 06-11-06). Deixando de lado o subrepticiamente tendencioso “abunda” (a lógica pedia um mero “existe”), vemos um orgulhoso conservador – essencialmente, um céptico – iludido com a natureza humana. Espantosa contradição. Depreendemos ainda que “admitir” um facto implica “aprová-lo” ou até “incentivá-lo”, o que é falso, obviamente falso.

Apenas 1% dos 40% de reclusos que usam drogas o fazem por via endovenosa e 30% dos reclusos são portadores de doenças infecciosas. O programa de troca de seringas proposto pelo Governo terá, portanto, um efeito directo pequeno, mas positivo e importante numa óptica de minimização de riscos. Sendo a questão da segurança ultrapassável, e havendo programas alternativos de recuperação, resta sublinhar uma prioridade: apostar nas Unidades Livres de Droga, como refere o director do ”Público” em editorial de 06-11-06.

José Manuel Fernandes merece, contudo, um reparo, sobretudo à luz do seu posicionamento liberal-libertário recente. A ideia de que “quem promove estes programas não condena moralmente o consumo de drogas apesar de estas destruírem física e psicologicamente milhões de seres humanos” causa estranheza, já que do “apesar” se deduz a defesa de uma dimensão moral no consumo de drogas. Ora, esse consumo não viola em si mesmo qualquer liberdade alheia. Logo, só com um generoso “aditivo” de moralismo social poderá alguém noutras áreas liberal defender tal coisa.

Confunde-se em demasia lei e moral. Mas nem tudo o que é ilegal ou ilícito é imoral (ex: conduzir uma mota sem capacete) e nem tudo o que é imoral tem de ser ilegal ou ilícito (ex: trair um amigo). Temos de perder o hábito de querer – por moralismo, paternalismo ou simples autoritarismo – regulamentar comportamentos alheios que não afectem outros directamente. Temos de ser mais liberais. E – em coerência – liberais para todas as estações.